Sobre comida, luz e ego
Este é um texto para reforçar que não trabalho com nada ligado a viver sem comer, não ensinamos as pessoas a deixar a comida, não fazemos parte do “grupo viver de luz”. Nós comemos e nosso trabalho está relacionado ao autoconhecimento, ao equilíbrio de nosso ser, à alimentação consciente, que envolve comer alimentos de origem vegetal, orgânica e com o mínimo de impacto socioambiental possível.
O Universo é impermanente e isso nos dá a possibilidade de evoluir, através do tempo vamos ganhando experiência e entendimento, precisamos deixar aquilo que não nos serve mais, cultivar a verdade e estar sempre aberto para encontrar uma forma de ver a verdade para além de como a conhecíamos. Assim funciona com todes que trabalham para o crescimento e o desenvolvimento do ser, desapegar do velho para dar espaço ao novo.
Assim foi minha trajetória e de minha família. Em 2001 fizemos um retiro de 21 dias baseado no livro Viver de Luz, da australiana Jasmuheen; foi uma experiência transformadora, um real divisor de águas. Tínhamos com essa experiência o desejo de aproximarmo-nos de Deus, especialmente acreditando que com uma dieta mais sutil estaríamos mais sutis e assim poderíamos estar mais afinados com os campos mais elevados. Imaginávamos que o retiro fizesse isso por si só. Um ano mais tarde, víamos que a tal experiência era mesmo uma ferramenta extraordinária, que nos leva realmente ao vislumbre de um estado de Felicidade tão plena e profunda, que realmente nos liberta de muitas amarras, porém, mesmo que tendo vivenciado-a ainda tínhamos ego, ainda tínhamos desejo, ainda julgávamos, e isso é bastante concreto e real. Se não nos observamos todos os dias, podemos perder essa conexão sutil que o tal processo de 21 dias nos oferece, mesmo que feito da forma mais adequada. Esse retiro, que hoje chamamos de Prana Prasakti, não faz nada por nós, ele apenas nos fornece ferramentas. Permanecemos nove meses em uma dieta líquida e com alguns dias de “seco" (sem ingerir nada) durante a semana. Voltamos a comer de forma esporádica entendendo que havíamos condicionado nossa liberdade e reconsiderando que a jornada espiritual é longa, exige dedicação diária independente das iniciações que fizermos. No entanto, sentíamos a diferença em nosso estado de ser quando estávamos comendo e quando estávamos só com os sucos, então acreditávamos que era muito interessante, sim, cultivar esse lugar de auto-observação através dessa privação do sentido do paladar, como a humanidade sempre fez usando a prática do jejum, com isso, nos sucessivos anos, mantivemos períodos de dieta líquida, basicamente a base de sucos de frutas.
De 2003 a 2010, me ocupei muito oferecendo palestras sobre o tema Consciência Prânica e nossa experiência com o Prana Prasakti. Já trabalhávamos com ele desde 2002, acompanhando pessoas nessa experiência; com o passar dos anos fomos entendendo melhor, mas também fomos vendo o tanto que as pessoas ficavam obstinadas pela possibilidade de parar de comer; muitos iam ao nosso encontro com o único objetivo de deixar a comida, sem qualquer relação com a espiritualidade. Havia a crença de que o Prana Prasakti faria tudo independente do empenho que as pessoas colocassem, desde que seguissem as regras, mas não era assim, sua qualidade depende exclusivamente da competência pessoal de assumir a responsabilidade pelo seu processo íntimo e de como lidar consigo mesmo dentro desse contexto.
O fato é que sob nossa observação todas as pessoas que concluíram o Prana Prasakti voltaram a comer. Se o objetivo desse processo fosse fazer as pessoas parar de comer, ele então seria um fracasso. Mas como um instrumento de desenvolvimento pessoal, que é o que ele realmente é, tem uma função espiritual brilhante, e não é a realização de desejos do ego, não tem a ver com uma "poção mágica" que nos dá super poderes. Sabíamos que sua finalidade era outra, mas nesses primeiros anos ainda acreditávamos que o quesito não comer era importante para despertar esse interesse nas pessoas, esse de vasculhar mais além, pelo menos quebrar padrões de crenças. Em função disso seguíamos falando sobre a possibilidade de viver sem a necessidade da comida, pois também acreditávamos nela, ainda que a tratássemos como um detalhe que não deveria ser o foco, mas essa possibilidade estava sempre presente em minhas palestras. As pessoas associavam isso à minha predominante dieta líquida e por um bom tempo manteve-se a fama de que não comia.
Em 2010, durante um circuito de palestras em Israel, meu irmão Samadhi e eu tivemos contato com uma forma de ver a Verdade muito mais lúcida e real do que vínhamos vendo. E, sim, por mais doloroso que fosse abandonar nossas convicções, nós a acolhemos: Promover o não comer é gerar distração no caminho espiritual, é iludir as pessoas.
Nós quase fechamos o Portal Parvati, o centro onde recebíamos as pessoas, até entender que o Prana Prasakti não tem relação com o que propunha o livro Viver de luz, que tem um propósito profundo de auto-aprimoramento e desenvolvimento da qualidade de Presença e não uma nova modalidade alimentar, que se caracteriza por viver sem comer, abastecido apenas pelo prana. Com isso o trabalho que desenvolvíamos ficou bem mais coerente, bem mais profundo, mais verdadeiro e eficiente quando o real enfoque foi reconhecido. Com isso, surgiu também um olhar cuidadoso sobre o pós retiro, que envolve responsabilidade ambiental, social e a manutenção de disciplina no cotidiano. Isso tem transformado muito a vida das pessoas, de forma verdadeira, e claro, isso inclui uma lida mais consciente com a alimentação!
Desde a realização desse entendimento em 2010, passamos a não utilizar mais o nome Viver de Luz. Dessa forma o Prana Prasakti ganhou muito mais significado, assim como pequenos ajustes pontuais que o tornaram mais maduro e acessível.
Quando ainda indagado sobre questões relativas a velha forma de entender o uso desse processo, associando a possibilidade de parar de comer, aproveito para falar dos perigos da fixação nos poderes sobrenaturais, distúrbios alimentares, ego espiritual e geralmente as pessoas agradecem muito, pois se identificam obcecadas por essa possibilidade, a de deixar de comer. Afinal de contas, todas as pessoas que já soube que viviam de luz eram santos, todas as pessoas que conheci que divulgavam o viver de luz comiam.
Desde 2010 venho trabalhando em desmistificar essa ferramenta de autoconhecimento, desconstruir a idealização que muitos têm sobre a iluminação e usar de artifícios para conquistar esse fim, pois há aqueles que imaginam que ao viver o Prana Prasakti tornar-se-ão plenamente livres ou até um super-herói, com superpoderes e efeitos especiais, como por exemplo a capacidade de viver sem comer… são apenas feitiços do ego, o ego espiritual em particular, ele quer ser espiritualmente especial. Ou simplesmente vê nisso a oportunidade de não ter que lavar louças, cozinhar e ter que fazer compras… temos nos empenhado em tirar o estigma do não comer que envolve essa ferramenta.
Há muito que fazermos antes de desenvolver qualquer poder extrassensorial, como por exemplo não mentir, não ser violento nas palavras, nos gestos, não ser controlador, não ser egoísta, não ser machista ou preconceituoso, não perpetuar os dramas de controle e assim ser mais leve, amoroso, pacífico, verdadeiro, íntegro... mas o ego de muitos quer parar de comer e não quer se trabalhar ou talvez essas pessoas acreditem que parando de comer essas coisas deixem de existir por si só… tudo continua existindo e o que não precisamos é de distração. Precisamos ser fiéis às diretrizes internas e para isso não há necessidade alguma deixar de comer, o essencial é invisível, é simples, é aqui, é agora.
Hoje percebo o quão importante é nos disciplinarmos com a forma de nos alimentar, isso é parte de nosso desenvolvimento espiritual também, saber como, quanto e o que comer é muito importante e não podemos pular essa fase. Depender da comida não é um problema, como lidamos com ela é que pode ser. Podemos fazer jejuns, dietas líquidas por um tempo, mas o que conta é o controle sobre o próprio ego, isso envolve muitas coisas, inclusive essa relação com a comida. A comida é uma bênção, e deve ser tratada assim, nossa comunhão com a terra. Mas o ego quer matar o ego, e de fome.
Com certeza ter uma vida consciente envolve olhar para o que colocamos no prato em termos de sua qualidade e também procedência, acredito muito que não há qualquer necessidade de parar de comer para estar plenamente em harmonia com a natureza, afinal essa é a nossa natureza. O que a jabuticabeira espera de nós? Que levemos suas sementes para outro lugar; sua polpa, nosso alimento; sua semente, uma floresta em potencial.
Fazemos parte dessa rede, desse processo. Alimentando-nos de frutas, castanhas, verduras, grãos e raízes, não participamos da grande engrenagem que destrói o planeta, e se temos como comprar de sistemas agroflorestais, ou melhor ainda, fazer nosso próprio sistema agroflorestal, teremos uma gama incrível de alimentos sem degradar nada, pelo contrário, ajudando na regeneração. É certo que não precisamos comer em grandes quantidades, tanto mais meditamos, mais presentes estamos, menos ansiedade, menos comida é necessária, mas não há nada de errado no comer de forma consciente.
Reconhecemos o poder do jejum, seus benefícios, e o recomendamos, mas de forma prudente e com os devidos cuidados. Nós praticamos jejuns, temos temporadas de líquidos, nos faz muito bem, contudo comer de forma consciente também muito nos auxilia, crescemos muito ao tomar essa prática tão corriqueira como uma disciplina que nutre o observador, exercita a plena atenção, desenvolve a permanência no Presente e pode auxiliar em questões mais abrangentes.
Eu não faço parte desse grupo que divulga o viver de luz. O folclore que se criou sobre mim, embora eu nunca tenha afirmado que não como, tem fundamento, sim, diante do meu discurso e a dieta predominantemente líquida, mas isso é baseado em um Oberom de antes de 2010.
Desenvolvamos a disciplina de silenciar e agradecer todos os dias, trabalhar o contentamento, reconhecer o quão extraordinária é essa experiência de viver nesse corpo e interagir com todos esses fenômenos, os sentidos, aceitar a vida como ela é, e é espetacular! Sem perder a motivação de ir lapidando aquilo que reconhecemos como desequilíbrio dentro desse cenário magnífico. Assim, podemos ir cultivando valores e dando passos em nossa própria evolução, sem pular nenhuma etapa. Tenho certeza que no final dessa jornada seremos muito agradecidos pela paciência que tivemos, pois nos permitiu viver, viver cada momento mágico que a vida nos oferece, veremos os tropeços, mas se sobressairá o nosso triunfo, o desfrute, pois a vida é isso, uma jornada linda que pede que caminhemos sem pressa para ter mais atenção nos detalhes do caminho.
Boa jornada a todes! Namaste

Precisamos ser fiéis às diretrizes internas e para isso não precisamos deixar de comer; o essencial é invisível, é simples, é aqui, é agora.